08/09/2011

O sebo, a sala de leitura, a biblioteca. E seus acontecimentos leitores



Por Antonio Gil Neto
 
Uma atividade que acontece nos sebos em meio a labirintos de mesas, estantes e por vezes um véu de poeira é a garimpagem. Pelos misteriosos destinos dos sebos podemos encontrar em segundas ou indeterminadas mãos muita prosa de primeira. Numa garimpagem o visitante, leitor em potencial, é apanhado pelo inusitado e pela aventura de perseguir como um detetive sossegado uma prova prazerosa. De repente, num lote no canto do fundo um gibi fora do catálogo, uma preciosidade a preço de banana. Pode acontecer algo assim. O segredo é procurar bastante, garimpar pra valer!

Os livreiros têm comprovado que a estrutura de uma loja de livros seminovos e usados não exige sofisticação. Mas requer certa organização para que o cliente encontre algo que procure e ao mesmo tempo se deixe levar pelas peripécias dos livros. Manter o ambiente limpo é fundamental para torná-lo atraente, agradável e manter o leitor nesse habitat de palavras. 


No sebo, muito mais que limpeza rigorosa e ordem alfabética impecável, é preciso haver organização que conduza, oriente e, sobretudo convide ao manuseio das páginas, à livre apreciação e que muitas vezes é não gostar e pronto. Muito mais que o rigor, o que se precisa é uma ordem lúdica, quase labiríntica, que faça o leitor viajante se perder e se encontrar nesse lugar de descobertas. Pedagogicamente diria que se trata de uma organização para o encantamento. Como imagino ser toda sala de leitura com seus leitores. 

Dessas onde gatos sonolentos se dariam bem com os rumores das leituras. E por falar em gatos, andei pensando que o sebo não é como uma instituição de amparo a animais. Não é um lugar de livros abandonados, rejeitados e entregues à má sorte. Embora haja quem assim pense, o sebo é um lugar onde os livros quase têm vida própria, é um ponto de encontro de exploradores e paladinos. Um porto de passagens infindas, aguardando aventureiros. Nos sebos os livros são escolhidos, valorados e ficam em ponto de espera para coexistir com os outros lares leitores. O mesmo vale para as salas promotoras da leitura. 

O negócio é criar e manter em movimento a leitura potencializada pelos livros. Ou seja, é a excelência do atendimento que faz o sucesso, seja no empreendimento comercial ou no empreendimento pedagógico de cada dia, de cada atividade em prol da leitura.

Imagine o quanto é necessário para quem lida com livros ter conhecimento cada vez mais amplo sobre o mundo da leitura. Tanto livreiros como educadores precisam dessa imprescindível ferramenta. Assim, livreiro e mediador, no empreendimento leitor, procuram deixar o cliente à vontade, objetivam conversa agradável e geradora de novas conversas, além de deixá-lo disposto a fazer as perguntas que bem entender, folhear os livros, trocar primeiras impressões, coisas assim. Tudo para que se sinta verdadeiramente acolhido pela atmosfera da leitura. Não basta ter amor pelos livros. 


É preciso ter amor e atitude em favor da leitura. Que é o quesito básico do amor pelos livros de fato. Conheci alguns livreiros que não se acham grandes leitores, mas afirmam com todas as letras que amam os livros “pelo que eles podem oferecer às pessoas”. Dizem ser praticamente impossível ler todos os livros da loja, mas ser importante ler um ou outro livro e o maior número possível de contracapas, prefácios e juntar todas as informações capazes de auxiliar os mais variados clientes. O restante é consequência do tempo. Dá um bom paralelo estas profissões: livreiro e mediador de leitura, não é não?
 

Li na internet, gostei e passo para vocês uma declaração de uma livreira chamada Sílvia: “Gosto de novos autores. Geralmente, as pessoas tendem a procurar mais pelos escritores consagrados. Eu gosto de novidade. Por isso, leio autores israelenses, africanos e gosto das biografias e obras com fundo histórico, como a literatura de guerra. Os livros me ensinam o que o tempo não permite ”. Bonito é prático, não é?
 

Me atrevo ainda a dizer que uma simples visita a um sebo pode ser o início de uma sugestiva e peculiar aventura em nossos dias mais comuns. Tenho um amigo que adquiriu um romance que escondia um episódio de amor entre suas paredes de papel: por entre as páginas resgatou um conjunto de cartas trocadas entre personagens da vida real e que haviam vivido o início e o final de um amor proibido, povoado de medo e culpa. Além da história comprada teve de bônus uma trama para imaginar, recriar, guardar como relicário.
 

Fiquei imaginando que as cartas, fotos, poemas, flores secas e os manuscritos nas margens do livro premiado poderiam instigar e muito a minha curiosidade para inventar, como um bom feitiço. Quantos personagens involuntários se revelam na possibilidade de um novo enredo a se contar! Os livros no silêncio dos sebos ficam sempre entregues ao movimento do tempo e são tesouros de infindos acontecimentos. São objetos únicos. E os livreiros, seus guardiões. Como os orientadores de leitura ou os bibliotecários, não é não?
 

Que atire a primeira edição de uma obra literária quem nunca criou laço afetivo com um livro. Assim como alguns cheiros e sons, os livros também ficam na memória e contam nossa história. Há maior emoção que reencontrarmos obras que marcaram nossas vidas como leitores? Pois não existe melhor lugar para isso. Num sebo que se preze temos ao vivo e a cores o resgate de tesouros perdidos na nossa memória leitora. Também aqueles que lemos, marcaram passagens, adoramos e depois emprestamos e nunca mais tivemos a sua viagem de volta aos nossos olhos leitores. Podemos reencontrar nessa busca antigos amores em meio a tantas ofertas. E assim redescobrir alegrias. Haja coração
 

É claro que, numa vida de consumo como a atual, onde a idéia de sucesso está ligada ao poder aquisitivo da última novidade a idéia do livro velho soa como uma extravagância. E não precisa ser “rato de sebo”, aquele que vasculha as prateleiras com a volúpia de quem escava tesouros, para usufruir as benesses de um bom sebo. Pode ser simplesmente no manuseio do livro, no apreciar de sua arte gráfica ou no percorrer os olhos pelas ilustrações, como verdadeiro objeto de arte, de conhecimento e de paixão. Isso já vale. 

Mas nada é comparável à surpresa, à alegria de um “achado”: um volume que, certamente já passou pelas mãos de tantos, sem que lhe tivessem notado o valor, que pode ir desde o simples gosto pessoal por determinado assunto, uma peça da coleção que cada um estabelece para si, uma primeira edição de poucos e raros exemplares no mercado, uma encadernação artística, enfim, um exemplar que represente para o seu “descobridor” algo especial ou apenas necessário a um trabalho de pesquisa.

Pensando bem qualquer leitura não é leitura. Tem de estimular a imaginação e a reflexão. 


Nesse aspecto os sebos podem ajudar. Drummond diz numa crônica que o sebo é o verdadeiro templo da democracia literária. Diferente das livrarias convencionais virou reserva cultural. Nele, há os de agora, os de antes, os fora de catálogo. Estamos falando da história editorial do país, não só dos livros do momento.
 

Parece que a escola ainda não tem conseguido ensinar a se gostar de ler. Parece usar metodologias que têm efeito contrário. Numa base em que ler é obrigatório e a qualquer custo, biblioteca é vista como lugar de castigo ou coisa assim. Mal sabem que leitura é subjetividade plena, é ver o que agrada à sensibilidade e se ajusta à sua forma de ser, ao seu momento. Há os que driblam o jogo do mando escolar e na própria escola e mesmo fora dela aprendem a gostar de ler.

Mas o problema acaba sendo não só a Educação. Há um grau de precariedade da vida contemporânea, da mente ocupada o tempo inteiro, sem tantas zonas de pausa. Quando chegamos em casa, após o dia tomado, quase não temos energia para ler. Exercitar a imaginação dá um certo trabalho. O sistema de vida que levamos pode não facilitar. Aí precisamos mudar para construir o nosso projeto leitor. Como um jardim de palavras. Não será só a escola a ser obstáculo. 


Mas mudá-la é um bom começo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário