08/02/2012

Dieta literária: devorando os livros certos




Todo mundo conhece aquele desenho da pirâmide alimentar, que começa com fartura de cereais e massas na base, depois empilha frutas, hortaliças, leite, leguminosas até chegar na pontinha, com consumo limitado de carnes, gorduras, açúcares e doces.

A pirâmide de Maslow é outra dessas figuras geométricas muito famosas, que coloca as necessidades fisiológicas e de segurança na base para só depois pensar em relacionamentos, aceitação social; a auto-realização fica lá no topo, quando tudo já foi resolvido. Pesquisando mais um pouco a gente descobre pirâmides políticas, organizacionais, socioeconômicas e até, veja só, egípcias.

Como se vê, pirâmides são muito didáticas para deixar bem claro o que é fundamental e o que é cereja; também são ótimas para mostrar por onde se começa a construir bases bem estruturadas para qualquer coisa. Pois então. Estava aqui ruminando umas alcachofras e resolvi elaborar uma espécie de pirâmide da leitura. Vamos lá então.


Dietrich Schwanitz, em seu “Cultura geral, tudo o que se deve saber” diz que somente a língua nos distingue dos animais e, mais do que a fala, a escrita é a chave para o domínio de uma língua. Falando, a gente pode descrever coisas e pessoas, mas as ideias precisam ser simples porque acompanhar o desenrolar da argumentação exige muita concentração.

Por meio da escrita, é possível libertar a linguagem da situação concreta (fatos) e torná-la independente do contexto (ideias). Quando a gente fala, a emoção predomina sobre a objetividade; quando escreve ou lê, desenvolve muito mais a capacidade de abstração.

Beleza. Quer dizer que ler serve basicamente para desenvolver a capacidade de abstração, o que não é pouco se a gente analisar onde isso nos leva: compreender a dimensão e o contexto da encrenca que é esse mundão, o que implica em entender pelo menos o básico sobre como as coisas funcionam e como a gente chegou até aqui; esse passo é fundamental se quisermos mudar a realidade (ou mesmo deixá-la exatamente como está, o que exige esforço igual ou maior).


Por isso, penso que a base da pirâmide deveria ser composta por livros de filosofia, onde a gente conheceria o que já se pensou a respeito e em que pé está o debate (isso tem o pomposo nome de estado-da-arte). Poderíamos comparar ideias, analisar posições e situar nosso papel no mundo, assim como a nossa missão.

Poderíamos escolher intencionalmente um comportamento diante da vida com um mínimo de coerência. Filosofia tem a ver com perceber nossa localização no tempo, no espaço e nas ideias. Sem isso, a gente fica vagando por aí sem saber aonde vai e porquê. A religião também pode se prestar a isso, mas para evitar entrar numa fila qualquer não tem jeito: há que se ler e se questionar muito.

Na base deveriam estar também livros de história, que complementam bem a filosofia. Por que certas nações vivem em guerra? Por que alguns povos são mais ricos que outros? Por que a terra é separada em países? Por que falamos português e não mandarim? Coisas básicas e fundamentais para não repetir erros (e votar em certos políticos).

Geografia também seria útil e básico para a gente se orientar. Fico assustada quando conversamos, em postos de gasolina, com motoristas de caminhão que não conseguem entender mapas nem fazem a menor idéia de distâncias ou de pontos cardeais. Eles aprendem o caminho com alguém e o repetem igual a ratinhos de laboratório. Triste, se a gente pensar que o mundo para eles poderia ser tão maior e mais interessante…

Por último, nessa base, penso que seria importante ter noções de ciências (matemática, física, biologia) e de onde partem as linhas de raciocínio para que as coisas façam sentido. Como manter um corpo minimamente saudável se a gente nem sabe direito como ele funciona? Como se virar num mundo sem saber fazer contas?

Conheço pessoas com o segundo grau completo que ainda não captaram o conceito de porcentagem. Muito preocupante.

Acredito que alguém com esse conhecimento de base já deveria ter as ferramentas básicas para evoluir no mundo e partir para os próximos estágios (seria o equivalente a forrar o estômago com cereais, para dar “sustança”).
No meio da pirâmide, eu colocaria a literatura e as artes em geral em proporções bem generosas, pois que, afinal, são elas que nos fazem humanos.

É onde estão os sonhos, as ideias, os cenários reais ou fantásticos. Por meio da literatura podemos viajar, conhecer lugares e viver coisas que nos seriam impraticáveis; conseguimos a proeza de participar e observar ao mesmo tempo; somos capazes de amadurecer e aprender com experiências alheias, verdadeiras ou absurdas. A literatura e as artes tornam possível o impossível, fazendo o mundo ficar absolutamente infinito.

Um pouco mais para cima, no próximo nível, em menor quantidade, penso que poderíamos nos concentrar em livros técnicos, que ajudariam a trabalhar melhor, aprendendo com outros. Certamente, qualquer profissional bem alimentado pelos estágios anteriores teria muito mais repertório para assimilar e aplicar esse conhecimento.

Na última etapa, lá na pontinha, depois de tudo bem mastigado e digerido, ficariam as notícias e atualidades, necessárias para que a gente não se isole do mundo, mas que precisam ser consumidas com comedimento. Notícia em excesso e sem contexto embrutece e anestesia.

É claro que isso é apenas o que eu consideraria como ideal, mas, evidentemente não pratico. Às vezes leio muito mais livros técnicos do que seria saudável e meus conhecimentos de história e filosofia são parcos e insuficientes.

Tem dias até que só leio notícias e bobagens. Mais ou menos como uma dieta desequilibrada, onde a salada fica de lado e a gente se entope de batatas fritas e doces. Obesidade literária, alguém já ouviu falar?

Bom, agora, quem sabe, com a ajuda de uma providencial pirâmide, talvez seja possível priorizar e organizar minha dieta literária.

Se você não concorda com a minha, pode fazer ajustes ou construir a sua própria (como seria um nutricionista literário?); pode ajudar a manter a boa forma dos neurônios…

Lígia Fascioni | www.ligiafascioni.com.br

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